quarta-feira, 26 de setembro de 2007

Um recorte para a caixinha

Antes do del.icio.us, era assim que a gente fazia: pegava o jornal, recortava a notícia (ou o texto, ou a ilustração) e guardava numa pastinha. Um dia minha tia teve que escrever um texto. Ela precisava explicar por que passara os seis meses anteriores pintando enormes quadros à acrílica, com imagens coloridas de legumes e verduras. Ela escreveu o texto. Usou direitinho o que sabia que o professor ia querer ler (sim, tinha um professor envolvido na história) e escreveu um texto medíocre. Não conseguiu dormir. Acendeu o abajur onde ela guardava a caixinha dela (a pastinha é minha, ok?). Resenhas de livros que ela nunca leu, entrevistas com pessoas que ela não conheceu, críticas de filmes que ela amou. Obituários, anúncios de casamentos e quedas de presidentes. Tudo cabia ali, e tudo o que lá estava dava sentido para o que não entrou na caixinha. Ela reescreveu o texto. Botou ali um pedaço de si e muito pouco do que o professor realmente esperava ler. Como uma criança feliz, passou duas semanas contando essa história (e hoje quando minha avó pergunta dez vezes a mesma pergunta, meu pai se lembra das crianças felizes que não se lembram se já contaram vezes suficientes a mesma empolgante história. Eu gosto de pensar na vovó assim).

Isso porque: uma vez eu li uma entrevista com um cara que parecia ser chato. Talvez ele até seja, mas disse umas coisas legais, dessas que reverberam com as outras coisas da caixinha. Daí eu recortei a notícia para levar pra casa (ah, sim, o jornal não era meu), mas esqueci o recorte em cima da mesa.

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+ Literatura

Boca de Lobo

Neto de brasileiro, o português Lobo Antunes se queixa de ter sido transformado em monumento literário, alfineta Saramago e diz que no futuro o idioma pátrio será um dialeto

EDUARDO SIMÕES
DA REPORTAGEM LOCAL

E m pouco mais de três anos, quatro livros do escritor português António Lobos Antunes, 64, foram lançados ou relançados no Brasil pela editora Alfaguara/Objetiva. Um novo título acaba de chegar, "Eu Hei-de Amar uma Pedra" (2004), e o autor, que não vem há 24 anos ao país onde nasceu seu avô, ensaia uma volta. "Sou um homem generoso. Resolvi deixar o Brasil para Saramago, coitado, e ficar com o resto do mundo", ironiza. "Mas acho que vou começar a querer o Brasil para mim." Leia trechos da entrevista que Lobo Antunes deu à Folha, por telefone, de Lisboa.

 

FOLHA - O sr. recebeu recentemente o Prêmios Camões, e, aos poucos, parece que se forma uma consenso em torno da qualidade de sua obra, para a qual faltaria apenas um Nobel. A idéia de unanimidade agrada, incomoda ou pouco importa?
ANTÓNIO LOBO ANTUNES -
Prêmios não têm nada a ver com literatura. Não tornam os livros melhores nem piores. São uma coisa midiática que dura muito pouco tempo. São bons quando trazem muito dinheiro. Mas não se pode se ligar a esse negócio. Tantos grandes não ganharam nenhum prêmio...

FOLHA - Em "Eu Hei-de Amar uma Pedra", um homem observa fotografias antigas e recorda fatos corriqueiros e experiências sentimentais. Como surgiu a idéia de ancorar a narrativa em fotografias?
LOBO ANTUNES -
Não estava pensando em narrativa nenhuma. Como já disse outra vez, o que quero é colocar a vida toda entre as capas do livro. Esse foi um livro especial porque foi o único que me veio de fora para dentro. Haviam me contado a história de um casal velho que se encontra uma vez por semana, durante 40 anos, numa hospedaria de Lisboa. Isso me impressionou, e o ponto de partida foi esse. Depois, como em todos os livros, é um processo de elaboração interior, grande parte do qual não me é consciente. No começo eu tinha uma narrativa, mas depois fiz como uma hiena e comecei a comer o corpo vivo daquilo. Então ficou tudo fragmentado, estilhaçado...

FOLHA - Mas o expediente de dividir os capítulos iniciais em "fotografias" também foi inconsciente?
LOBO ANTUNES -
Em parte, sim. Quando começo um livro, tenho muito pouca coisa, sou pobre como um morto. As coisas vão vindo à medida que escrevo. Quer dizer, não tenho idéias. São as palavras que geram as palavras. Então tudo que tenho de fazer é treinar a mão. Mas normalmente as primeiras duas horas são perdidas porque os mecanismos conscientes ainda estão muito vivos. A sua autocensura, a lógica etc. Quando eu começo a ficar cansado, então as associações saem de forma mais livre, e o livro começa a descer.

FOLHA - "Eu Hei-de Amar..." saiu em 2004 em Portugal. Ele destoa bastante dos anteriores, por não tratar de Angola, da sua experiência com a guerra. Foi uma ruptura intencional?
LOBO ANTUNES -
É evidente que os três primeiros livros estão carregados de autobiografia, como todos os primeiros livros. Você, depois, necessita se libertar desta carga autobiográfica para ser ainda mais profundamente autobiográfico, mas de outra maneira. Não mais por meio de fatos. "Memória de Elefante" (Objetiva), "Conhecimento do Inferno" e "Os Cus de Judas" (ambos Alfaguara) eram muito ligados a acontecimentos e realidade imediatos. Tenho a sensação hoje de que precisava me libertar para tentar coisas mais ambiciosas...

FOLHA - E, nesse sentido, ele satisfez suas ambições?
LOBO ANTUNES -
Acho que você só pode começar um livro quando está seguro de que não pode fazê-lo. Lembro que, quando comecei a escrever este livro, pensava: "Para descrever uma relação como esse casal tinha era necessária uma mão muito delicada". E eu não achava que tivesse uma mão tão delicada assim para tratar dessa relação com todo o respeito. Porque as pessoas dos livros, mesmo que sejam só vozes, acabam por adquirir uma densidade tão carnal, tão humana que, quando se está a trabalhar neles, vive-se rodeado de fantasmas, que têm uma realidade mais real do que as pessoas autênticas. E você nem sequer pode mandar neles porque o livro é um organismo vivo e ele fura o plano...

FOLHA - Sendo não imediatamente autobiográfico, "Eu Hei-de Amar..." serve melhor à sua intenção de escrever um livro ligado a palavras, e não a idéias?
LOBO ANTUNES -
O problema é que um livro não se faz com idéias, e sim com palavras. E isso está muito patente, por exemplo, na poesia. E, por meio das palavras, você provoca emoções, mais do que idéias. A adesão é emocional e afetiva em qualquer obra de arte. O melhor crítico de teatro é a bunda. Quando a peça não é boa, ela começa a doer.

FOLHA - O sr. tem medo de "perder a mão"?
LOBO ANTUNES -
Meu único medo é sempre o mesmo: não desiludir as pessoas que tiveram sempre em mim, desde quando comecei, uma fé que nunca partilhei. E agora me transformaram nessa espécie de monumento, com todos esses prêmios, traduções em todo o mundo... Então tenho cada vez mais medo porque sei que um dia posso começar a me repetir. Eu tenho a impressão de que uma pessoa nasce com um certo número de livros dentro dela. E é muito penoso, por vezes, ver os livros finais de um escritor que escreve mais livros do que aqueles com que ele nasceu. Quando começam a se tornar um pouco plagiadores de si mesmos. Como os últimos de Hemingway, Faulkner etc...

FOLHA - "Eu Hei-de Amar uma Pedra" se trata de uma história de amor impossível?
LOBO ANTUNES -
Não sei se os amores são possíveis ou impossíveis. Uma história de amor é uma coisa muito complicada. Porque, se você não é capaz de reinventar o cotidiano, então o amor acaba. Porque, numa história de amor, nós exigimos sempre duas coisas: por um lado, o cotidiano, a rotina. Por outro, a surpresa. E é muito difícil conseguir juntar as duas coisas. Não deixar que uma relação naufrague no dia-a-dia e se transforme em hábitos instalados. Você vai conhecendo tudo do outro e, com o tempo, corre o risco de vir a usura.
E aquilo que você vê hoje em dia é que a maioria das pessoas, homens e mulheres, vivem monogamias suicidas. É evidente que teria adorado viver uma relação de 30 anos com alguém. Eu duvido que pessoas como o Vinicius [de Moraes], que se casou nove vezes, tenham sido felizes. Eu duvido, mas pode ser que sim...

FOLHA- Como se explica o fato de o sr., que é neto de brasileiro, ter estado tão distante do Brasil?
LOBO ANTUNES -
Eu sou um homem generoso. Resolvi deixar o Brasil para Saramago, coitado, e ficar com o resto do mundo. Agora, falando a sério, o Brasil me é tão próximo de sangue, porque meu avô nasceu aí e se chamava António Lobo Antunes. Mas, paradoxalmente, não tive nunca muita pressa de ser publicado no Brasil. Tinha a impressão de que ia acontecer o mesmo que em Portugal, onde fui muito criticado nos primeiros livros, até agora se fazer esta unanimidade. Agora eu sou chuchu aqui. Mas minha consagração, para usar uma palavra católica, veio do estrangeiro. Dos EUA, da Espanha, Alemanha, França. Mas meu avô foi vital para mim. Foi o homem que mais amei, o homem que mais amor me deu. Eu era o filho mais velho do filho mais velho dele. E fui um pouco educado à moda do Brasil, em Lisboa. De Belém do Pará. À maneira daquela parte do Brasil, conservadora, patriarcal... Eu saía para a rua e tudo era diferente do que se via em casa. Era estranho. Estava fugindo sempre para a casa do meu avô. De certa maneira isso tudo continua dentro de mim desde a infância...

FOLHA - Há quantos anos o sr. não vem ao país?
LOBO ANTUNES -
Desde 1983. Há 24 anos não vou. Estou sempre recebendo convites, mas para mim é difícil trabalhar no Brasil. As tentações são muito grandes. Mas estou pensando em ir. São tantos os convites que preciso aceitar. Acho que vou começar a querer o Brasil para mim... Mas estava pensando em ir para o ano. Por causa dos prêmios, fui à Argentina, Colômbia, México. E não ter ido ao Brasil é uma injustiça muito grande, porque devo muito à cultura brasileira. Os livros que eu lia em criança eram os do meu avô. Aluísio Azevedo, Machado de Assis, Raul Pompéia, tudo isso.

FOLHA - O sr. acredita ter influenciado escritores portugueses ou seria prematuro falar disso?
LOBO ANTUNES -
Se você ler a literatura que se está fazendo, há muita gente a escrever a la Lobo Antunes. É muito curioso isso. Mas talvez não seja mal começo, e espero que eles encontrem a voz deles... É mais ou menos inevitável, mas não me parece que seja saudável, porque se escreve e publica pouco em países que têm clima bom. Você encontra mais poesia do que livros de prosa. Porque, para escrever um livro desses, tem de estar trabalhando como um cão por dez anos. E a maior parte dessas pessoas não é de escritores profissionais. São jornalistas, médicos, engenheiros, empregados de escritório etc. Não têm tempo, não podem somente escrever quando chegam em casa. É um trabalho como outro qualquer, tem de trabalhar o tempo todo nisso, senão aquilo que se faz não é bom.

FOLHA - Quantas horas o sr. costuma trabalhar diariamente?
LOBO ANTUNES -
Agora estou no meu ritmo normal de 10, 11 horas por dia. Não há mérito nenhum, é só uma questão de disciplina, se se quiser fazer um trabalho decente.

FOLHA - O sr. já afirmou que não é uma figura institucional. Arriscaria, no entanto, comentar a recente afirmação do seu conterrâneo José Saramago, de que no futuro Portugal e Espanha serão um país só?
LOBO ANTUNES -
Ele disse isso? Bem, não comento as minhas opiniões, que dirá a dos outros.
Acho que é inevitável que daqui a uns 500 anos nossa língua seja um dialeto e vamos todos provavelmente falar inglês. Mas não estou preocupado com isso. Acho extraordinário que as pessoas tenham tantas idéias. Eu não tenho muitas. E sobretudo não sei fazer futurologia. Me sinto bem sobretudo na minha língua. E nesta cidade [Lisboa], por causa da sua luz...

Um comentário:

Sacerdote Ulça disse...

Eu tinha lido essa entrevista. Ele é chato, mas um chato legal - tipo a gente. E o que cabe dentro de uma caixa é o melhor que temos no mundo.

Sim, li Odisséia pra aula do Welinton. Me empolguei e li inteira. É tipo um Harry Potter que você leva alguns meses pra conseguir terminar...

ULÇA